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quarta-feira, 10 de março de 2010

Presentes do Contardo Calligaris

1)A fraqueza faz a força

O ideal masculino hoje é o homem corroído ou, no mínimo, arranhado por demônios internos
NA SEMANA passada, escrevi sobre a dilacerante tristeza dos crepúsculos. Uma leitora, Júlia Hokama, perguntou-me, brincando: "Psicanalistas também sofrem de melancolia?".
Bom, em "Uma Mente Inquieta" (WMF Martins Fontes), Kay Redfield Jamison, uma grande psicóloga clínica, contou seu próprio calvário ao ser sacudida por seus humores variáveis, entre mania e depressão profunda. O livro ainda é, ao meu ver, a contribuição mais tocante e decisiva em matéria de transtornos bipolares. Jamison escreveu também "Touched by Fire" (tocados pelo fogo: a doença maníaco-depressiva e o temperamento artístico), em que diagnosticou como maníaco-depressivos uma série de grandes escritores, deixando-nos com a pergunta: foram escritores e grandes por causa de sua doença ou pelo esforço de ultrapassá-la pela arte?
Seja como for, em 1941, bem antes de Jamison, Edmund Wilson, o crítico literário, publicou "The Wound and the Bow" (a ferida e o arco). Em seis ensaios, ele mostrou como Dickens, Kipling, Wharton, Hemingway, Joyce e Casanova transformaram sua ferida mais dolorosa e central em arte, ou seja, mostrou como eles encontraram sua força em sua maior fraqueza. Em mais um ensaio, que dá nome ao livro, Wilson aborda uma tragédia de Sófocles, "Filoctetes", que era um guerreiro grego, dono e usuário legítimo do arco e das flechas que tinham pertencido a Héracles (armas poderosíssimas).
À caminho de Troia, Filoctetes foi mordido por uma serpente, e sua ferida doía e fedia terrivelmente; os gregos, cansados do fedor e das lamentações do guerreiro, abandonaram-no na ilha de Lemnos.
Dez anos mais tarde, os mesmos gregos entenderam que, sem Filoctetes, eles não ganhariam a guerra; eles voltaram a Lemnos para pegar, ao menos, o famoso arco. Um jovem convenceu a todos de que o arco sem Filoctetes seria inútil. Enfim, Filoctetes se reintegrou na armada grega e foi um dos guerreiros escondidos no ventre do famoso cavalo de Troia.
Para Wilson, Filoctetes é o protótipo do herói trágico segundo Sófocles, o herói cuja força e habilidade extraordinárias são inseparáveis do fedor e da dor de uma ferida, física ou moral, que nunca sara.
Essa ideia, de que a força é indissociável da fraqueza e talvez, às vezes, coincida com ela, é tão antiga quanto a invenção mítica de heróis e heroínas. Aquiles não seria ninguém sem seu calcanhar, o Super-homem seria insosso sem sua sensibilidade à kryptonita etc.
Em particular, mesmo nos anos 1950-1970, quando Hollywood parecia preferir que seus "machos" fossem heróis sem falha ou quase, sempre apareciam Filoctetes feridos, que conquistavam a admiração dos homens e o amor das mulheres.
Entre as fileiras dos John Waynes, insinuava-se, sei lá, James Stewart desesperadoramente fóbico das alturas, em "Um Corpo que Cai", de Hitchcock, ou Montgomery Clift compondo um Freud atormentado, em "Freud, Além da Alma", de John Houston.
Esses dois tipos de herói brigavam entre si -nos corações das plateias e na realidade do set: por exemplo, durante a filmagem de "Rio Vermelho", de Howard Hawks, John Wayne e Walter Brennan manifestavam publicamente sua indignação com a "bichice" de Montgomery Clift.
Talvez os heróis "de uma peça só" (digamos assim) ainda prevaleçam, mas há claros sinais de que o ideal masculino da década que acaba é o do homem corroído ou, no mínimo, arranhado por seus próprios demônios internos.
Na televisão, por exemplo, a década começou com um chefão da máfia tendo que recorrer a uma psicoterapeuta ("Família Soprano", HBO) e acabou com o terapeuta de "In Treatment" (HBO), que é verossímil (e adorável, aliás) justamente por ser tão perturbado quanto seus pacientes. Além disso, tanto o herói de "The Mentalist" (Warner) quanto o de "Lie To Me" (Fox) parecem dever suas aptidões extraordinárias às feridas de seu passado. O mesmo, provavelmente, vale para "House" (Universal).
Em 2009, foi montada, em São Paulo e no Rio, uma peça de minha autoria, "O Homem da Tarja Preta" (sinto-me autorizado a mencioná-la pois ela está no fim de sua última temporada, em Salvador). Pois bem, quando eu a escrevi, cinco anos atrás, parecia-me ousado expor assim a fragilidade do "macho". Hoje, já acho que as dúvidas, os conflitos psíquicos e as fraquezas atormentadas são o equivalente da ferida de Filoctetes, ou seja, quase o fundamento da eventual força do homem contemporâneo. É um progresso, não é?




2) Lembranças e brigas


Sempre que evocamos os eventos passados, nossas lembranças são reescritas e corrigidas
TUDO COMEÇOU em 1990, quando George Franklin, um aposentado californiano, foi acusado de um infanticídio que ele teria cometido 21 anos antes.
Repentinamente, Eileen, a filha de George, declarou que, quando criança, ela tinha visto seu próprio pai matar uma menina de oito anos. Eileen explicou seu longo silêncio por uma amnésia: ela presenciara um evento tão horrível que, por duas décadas, ela reprimira radicalmente toda lembrança dos fatos. A jornada de George Franklin terminou sete anos mais tarde, quando um tribunal federal o soltou, considerando duvidoso o testemunho de Eileen.
O processo de Franklin inaugurou uma guerra que durou mais de uma década. De um lado, havia um grupo de psicoterapeutas que acreditavam no seguinte: eventos traumáticos podem ser totalmente apagados da memória e reconstruídos, mais tarde, com a ajuda e o incentivo de um terapeuta. Do outro (é esse lado que prevaleceu), havia estudiosos do funcionamento da memória, que, à força de pesquisas experimentais, mostravam que 1) os eventos traumáticos nunca são propriamente apagados da memória e 2) a "reconstrução" de uma lembrança perdida, ainda mais com ajuda e incentivo de um terapeuta, é quase sempre um processo criativo, ou seja, invenção.
Quem se interessar por essa guerra pode ler o clássico "Victims of Memory" (vítimas da memória), de Mark Pendergrast (Upper Access, 1996), ou "Remembering Our Child- hood" (lembrando-se da infância), de Karl Sabbagh (Oxford, 2009).
O fato é que, graças à dita disputa, o funcionamento da memória foi pesquisado ativamente. E o que me importa hoje é justamente uma propriedade de nossa memória que foi documentada durante o debate dos anos 90 e que explica por que seria inexato dizer que Eileen Franklin, por exemplo, mentiu. Aqui vai: a cada vez que evocamos ou aprimoramos nossa lembrança de um evento, nossas palavras modificam o evento aos nossos olhos, de tal forma que estamos prestes a jurar que ele aconteceu exatamente como diz nosso relato mais recente.
Um exemplo. Eu tinha ("tinha", no passado) uma lembrança infantil, dos meus dois anos. Como muitas lembranças da primeira infância, ela era uma simples percepção: a silhueta de uma criança correndo, destacando-se, em contraluz, diante de uma porta de vidro. Evoquei e descrevi essa lembrança pela primeira vez durante minha análise e, desde então, repetidamente, ao longo de minha vida, tentei "entendê-la", "recordá-la" melhor. Resultado, hoje, minha lembrança é a seguinte: a criança que corre sou eu (o que é curioso, pois a dita criança está bem em frente de meus olhos) - e sou eu aos quatro anos, não aos dois (a porta de vidro é, "claramente", a da sala do apê dos meus quatro anos). Além disso, posso dizer com convicção para onde estou correndo e por que estou extraordinariamente feliz (estado de ânimo que, aliás, não fazia parte da imagem inicial).
Não sei se algo disso corresponde ao acontecimento que deixou em minha memória a silhueta de uma criança em contraluz. Igual, é só por hábito profissional que me obstino a desconfiar de minha lembrança assim como ela se apresenta agora; se não fosse por essa desconfiança do ofício, aquela imagem enigmática de criancinha correndo em contraluz estaria mesmo completamente perdida - transformada, irremediavelmente, por todas as minhas narrações, explicações e interpretações.Como os historiadores sabem há tempo, a cada vez que evocamos eventos passados, nossas lembranças são imediatamente reescritas e corrigidas por essa evocação.
Há uma consequência desse fenômeno, que todos verificamos, uma vez ou outra. Um casal briga ao redor de um acontecimento recente: "Você disse que.."; "Eu só disse aquilo porque você me provocou"; "Não, quem provocou primeiro foi você", e por aí vai. Imaginemos que ambos sejam de boa-fé e que cada um queira apresentar honestamente sua versão dos fatos; eles deveriam facilmente entender como surgiu o mal-entendido, não é?
Pois é, isso não acontece quase nunca. Ao contrário, em geral, a briga piora: o outro, que contesta minha versão e a contrapropõe a sua, é mentiroso, pois contesta não "minha versão", mas os próprios fatos, assim como eles, ao meu ver, foram impressos diretamente em minha memória. Moral da história: seria bom que o uso da memória nos inspirasse alguma prudência. Afinal, a cada vez que nos lembramos de algo, quer queira, quer não, transformamos nosso passado.


3) A dificuldade de entender Waterloo


Receio que o grupo me tire a coragem de pensar diferente e declarar a divergência
NA SEMANA retrasada, evoquei um episódio de 1975. Numa célula do Partido Comunista Italiano, em Milão, um companheiro fez um comentário infeliz sobre a sexualidade de Pier Paolo Pasolini, que acabava de ser assassinado. Eu saí, consternado, e o episódio foi o fim da parte de minha vida em que pude ser militante.O que abandonei naquela época foi a militância, não a política. Meu interesse pela política continua forte até hoje, mas algo mudou. Desconfio de partidos, grupos e aglomerações; mais especificamente, desconfio das falsas concordâncias que surgem entre os membros de partidos ou grupos. Sempre receio que o grupo me tire a coragem de pensar diferente e declarar a divergência. Existe uma antiga "prova" da existência de Deus, que se chama prova pelo "consenso das gentes", ou seja, algum deus (que, por acaso, é sempre "o nosso") deve existir "porque" todos os povos têm ao menos a ideia da existência de uma divindade. A única coisa que esse argumento me parece provar é que preferimos a tranquilidade de viver concordando com os amigos à tarefa solitária de pensar por nossa conta. Claro, aquele episódio de 75 não foi a única razão que me afastou da militância partidária. Também no começo dos anos 70, devo ter lido "Darkness at Noon" (escuridão ao meio dia), o livro em que Arthur Koestler diz adeus ao comunismo. E, na mesma época, li "The God that Failed" (o Deus que falhou), uma coletânea de textos de intelectuais ex-comunistas, publicada em 1949, por Richard Crossman (reli o livro agora, numa reimpressão ainda disponível, de 2001, pela Columbia University Press). A geração dos militantes à qual pertencem os autores reunidos no livro (André Gide, Richard Wright, Ignazio Silone, Stephen Spender, Louis Fischer e Arthur Koestler) se dividiu em duas categorias. De um lado, os impenitentes, tipo Eric Hobsbawm, que não querem desistir de seus ideais: se, como disse Enrique IV ao tornar-se católico por conveniência política, "Paris vale uma missa no domingo", por que o comunismo não valeria purgas, massacres e perda de liberdade? Do outro lado, os arrependidos, que buscam expiar a culpa de ter acreditado em ideias ensanguentadas.Minha geração, que veio depois, ficou logo cética, mas, em sua descrença, sem originalidade. Já no século 19, Gustave Flaubert, no divertido "Dicionário das Ideias Feitas" (Nova Alexandria), escrevia: "Ilusões: sempre dizer que tivemos muitas, mas que as perdemos todas" (cito de memória). Acontece que, logo nestes dias, recebi um e-mail inesperado de um amigo que não via há mais de 30 anos. Um amigo da época daquele episódio de 1975. Iniciamos uma correspondência: cada um de nós está tentando contar ao outro por qual caminho sua vida enveredou. Aquém disso, tentamos também reconstruir nossas experiências daqueles dias, entre 1968 e 1979, que é quando a gente se perdeu de vista. Ora, talvez se trate de um efeito normal do tempo que passou, mas o fato é que, apesar dos esforços (dele e meus), aquele passado me parece cada vez mais caótico e estrangeiro. Mais do que qualquer ensaio, é um texto literário que resume melhor (aliás, não resume, descreve) minha sensação ao refletir sobre aquela época. Trata-se da "Cartuxa de Parma", de Stendhal (ed. Globo). Quem leu deve se lembrar da aventura do protagonista, Fabrice del Dongo. O jovem Fabrice é um grande admirador nem tanto de Napoleão, mas das ideias de liberdade que o imperador francês encarnou e difundiu Europa afora. Aos 17 anos, em 1815, o que sobra ao nosso herói é a esperança de se juntar a Napoleão na hora de sua tentativa extrema de voltar ao palco da história, depois do exílio na ilha de Elba. Fabrice, que mal fala francês, vaga pela França até encontrar um hussardo morto, veste seu uniforme com orgulho (e vaidade) e, com isso, por acaso, envolve-se, ou melhor, é envolvido na batalha de Waterloo, onde Napoleão será definitivamente derrotado. Quanto a Fabrice, ele será ferido pela espada amiga de outro francês e, sobretudo, não entenderá absolutamente nada da batalha, que aparecerá, aos seus olhos, como uma frenética alternância de idas e voltas de cavalheiros num nevoeiro de balas perdidas. Fabrice, aliás, uma vez chegado de volta em casa, não parará de se perguntar: "Será que eu estive mesmo na batalha de Waterloo?". Saio de férias, retomo em 28 de janeiro. Bom fim e bom começo de ano a todos.


Fonte: http://contardocalligaris.blogspot.com/2009/12/dificuldade-de-entender-waterloo.html

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